CINEMA E LITERATURA
A “dicotomia” Literatura/Cinema é tão problemática quanto a relação entre Música e Artes Plásticas, Cinema e Pintura, Música e Literatura, Teatro e Cinema, Arquitectura e Pintura, Cinema e BD, BD e Pintura, Cinema e Videoarte, etc. Há decerto muitas variantes, experiências e fusões. A História da Arte, sobretudo a partir do Modernismo, está cheia de profícuas transfusões de sangue entre as mais diversas e aparentemente distantes Artes. No entanto, insiste-se em Portugal, quanto a mim de uma forma um bocadinho excessivo, na dicotomia Literatura/Cinema (prefiro chamar-lhe vizinhança) como se as outras não existissem e não fossem igualmente problemáticas e problematizáveis. Até parece que se ignora que houve compositores que foram buscar "inspiração" à Literatura ou às Artes Plásticas para escrever as suas obras ou que certos cineastas plasmaram os seus planos segundo os cânones da Pintura de uma determinada época. Um exemplo clássico é Claude Debussy com o seu “Prélude à l'Après-midi d'un Faune”, obra inspirada no poema “Le Faune”, de Mallarmé. No entanto, não passa pela cabeça de ninguém afirmar que a “versão” de Debussy é necessariamente inferior ao poema de Mallarmé. E porquê? Porque o facto de uma obra ter como fonte de inspiração a obra de outro autor não a condena irremediavelmente a uma condição servil. Uma obra de arte é uma estrutura que não só obedece a leis internas próprias como também às do género em que se insere, ou seja, é uma entidade autónoma. Todavia, não é isto que se passa com a “dicotomia” (quanto a mim falsa) Literatura/Cinema. Num blogue de referência como é o “Da Literatura” (http://www.daliteratura.blogspot.com/) o crítico Eduardo Pitta refere o seguinte: “ (…) O cinema não tem de decalcar a literatura. Agora que chegou às salas portuguesas um novo filme adaptado de um romance de Michael Cunningham, e estou a falar de Uma Casa no Fim do Mundo, é altura de dizer que o filme é... melhor que o livro. Parece mas não é boutade. O facto é que os livros de Cunningham (n. 1952) «resultam» melhor no ecrã. Foi assim com As Horas (2002, o filme), é de novo assim com Uma Casa... Continuo a achar que são coisas diferentes. O meu ponto de vista é este: no seu caso, o patamar literário fica aquém do patamar cinematográfico (…)” Ora, parece-me que o autor deste texto incorre, no mínimo, em duas contradições: 1) afirma (e bem!) que “o Cinema não tem de decalcar a literatura” mas logo em seguida escreve que “o filme é…melhor que o livro. Parece mas não é boutade; ”; 2) “O facto é que os livros de Cunningham resultam melhor no ecrã”. Vamos por partes: a primeira contradição reside na necessidade, quiçá inconsciente, que o autor teve de recorrer à palavra “boutade”. Porquê “boutade”? Um filme pode muito bem ser melhor que o livro que lhe serviu de base (relembre-se, a título de exemplo, o filme Spartacus de Stanley Kubrick). Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A questão está em saber se o filme tem ou não qualidade, é isso que está em jogo. (A verdadeira boutade consiste, a meu ver, muito simplesmente em pensar-se aprioristicamente que o livro é sempre superior ao filme.) Além do mais, o Cinema tem, como é sabido, meios expressivos e estéticos próprios e não pode, por conseguinte, ser reduzido a uma espécie de estatuto ontológico menor. A segunda contradição é a seguinte: não me parece que os livros de Cunningham (ou de qualquer outro escritor) tenham obrigatoriamente de resultar melhor no ecrã. Não podem porque não foram feitos com esse propósito. No entanto, reconheço que a forte componente imagética dos livros deste autor, bem como o enredo e personagens bem vincadas podem, eventualmente, “facilitar” o trabalho do argumentista, mas isto não basta. Um filme é sempre uma versão de uma versão de uma obra. (Vejam-se, a título de exemplo, os livros teóricos de Syd Fied, o mestre do Screenplay americano). Talvez na origem desta “dicotomia” (tão desfavorável que tem sido ao Cinema…) esteja a questão da narratividade e o facto de este ainda ser uma Arte relativamente recente. Não sei. De qualquer das formas,
uma obra de arte, seja ela qual for, deve ser encarada como uma entidade autónoma, com as suas leis e processos semióticos próprios, e nunca em função da fonte que a inspirou. Esse aspecto é absolutamente secundário e um filme é sempre outra coisa.
uma obra de arte, seja ela qual for, deve ser encarada como uma entidade autónoma, com as suas leis e processos semióticos próprios, e nunca em função da fonte que a inspirou. Esse aspecto é absolutamente secundário e um filme é sempre outra coisa.
1 Comentários:
Li o seu post. Ele prova que é possível o diálogo a partir de posições divergentes (e, neste caso, «divergente» é um adjectivo excessivo). Subscrevo tudo o que diz, permitindo-me duas ressalvas: 1. «boutade» não contradiz nada, está ali como auto-ironia (pois se eu afirmara o primado do «cada coisa é uma coisa»...); 2. a «dicotomia» literatura vs cinema apenas reflecte a maior acessibilidade (traduzida em popularidade) dessas formas de arte. Quantas pessoas identificam Debussy? Ainda por cima «apropriado» por Mallarmé...? Todas as variantes que propõe são correctas. Os livros sobre cinema estão cheios de exemplos; há muita poesia contaminada de música (música «exterior» à tessitura prosódica), etc., etc. Quanto a Cunningham, dizer que os seus livros «resultam» melhor no ecrã é uma forma de reconhecer que parecem scripts.
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