sexta-feira, julho 31, 2009

O VELEIRO

NO, NOTHING DIES WITHIN YOUR EYES
Eddie Veder


E a ilha ergueu-se de um fogo só. Levemente. Nada dirás, face que te assassina. Talvez apenas o teu rosto.
Como se em ti retinissem tríades leves—mercúrios refúgios mitos, nada dirás, fala que te sobe ao céu. Bem sabes que lugar algum te segreda. Alma-mater negra de neve é a tua cisão, e o fogo é uma aranha de bronze.
O teu fogo desenha alto a tua ilha a tua pose de mercúrio.
Bem sabes que lugar algum te segreda. Tocas os portos onde há flechas de sol a pino. E desabas, veleiro pobre, à popa e à proa do mundo. Viajas por mar e por terra e, só por isso.

terça-feira, julho 28, 2009

O MAR

A cada passo a ilha é outra luz. Cresceste. Chegaste aqui. Naufragaste. Partiste um dia. Enfim, viste crescer o inferno. Ainda cheiras a navegações. Na volta do mar, viste morrer muita luz em gumes de carne. A casa ainda te cinge em sombra. De mar em mar, chegaste a terra firme para lá do rio atlântico. Um coração te levou, um cárcere carcereiro te trouxe ao escuro, entre o choro e a linha de água.

Casa de nunca acordar, dirás tu. Mais que por mar viajaste por essa casa da ilha. E só muito depois naufragaste aqui como se te cindisses de outro modo ainda.
Só assim coincides comigo--mas às avessas, dirás tu. Antes de muito depois da luz. Demais a mais, negras são as águas sob o azul do mar , dirás tu.

quinta-feira, julho 23, 2009

A VIAGEM

Dormes longe na tua longa ilha, sepulta luz de água, múltiplo seio, mundo que flutua. Um dia, uma dor de águas abrirá espelhos na destreza dos teus olhos: e múltiplas aves cantarão, cantando, os teus olhos brancos no chão. E águas de todas as luas, ou mãos nos teus seios, ou deuses a roçar as tuas asas, desenharão, num cenário de duplas faces, a tua ausência.

E a ferida continuará.Viajante, como eu, de um deserto de um qualquer deus sem Deus, assim és tu. Por mares e feridas viajas, e em todas as luas há um mar, um som gelado, um oceano--um rio terrível.Ou mãos nos teus seios: aurora boreal.

segunda-feira, março 31, 2008

O MISTÉRIO DAS FARMÁCIAS DE MÉRIDA





Leitor lusitano, é caso para dizer: há sempre uma farmácia desconhecida na Mérida que existe em ti. Calma, não estou a insultar ninguém. Abre os olhos, deambula pelas ruas estreitas e escuras da capital da antiga Lusitania e enche a barriga de montras de farmácias que povoam a zona velha da cidade.


Intrigado, inquiri um "lusitano" afável que apanhei na calle de Santa Eulália.

--Buenas tardes. Puedo harcerle una pregunta tonta?
--Hombre, por supuesto que si!
--Por que hay tantas farmacias en Mérida?
--Bueno, hombre, las hay porque son muy antiguas.



Assim elucidado, relembrei Eça, que tanta falta faz na caricatura dos tempos actuais. Eça escreveu algures que o passatempo favorito dos portugueses era estar doente. De repente, eis-me em puro êxtase: acabara de desvendar o mistério das doenças tugas. Não acreditam em mim? Pois então para que servem as farmácias senão para propagar doenças? Mas já lá vamos.

Como é sabido, Mérida tem património romano. Um templo a Diana, um teatro e um anfiteatro. Tudo bem preservado e bem vendido ao turista. Filmei tudo. Só não filmei o pretensiosmo espanhol de querer comparar Mérida a Pompeia e a Herculano. Uma parvoíce caracteristicamente castelhana.

(quiçá durante a noite os castelhanos se transformam em vampiros e vêm cá sugar-nos a energia e a autoestima que tanta falta nos fazem...)

A acreditar num mapa patente no museu da cidade, os americanos romanos investiram pouco em estradas no actual território português. Havia apenas três: uma desembocava em Olissipo; outra em Scallabis (Santarém) e outra em Bracara Augusta (Braga). Aos americanos da Antiguidade não faltava dinheiro, faltava isso sim um Marius Linus.

Bem, voltemos à apagada e vil doença dos tugas. Em Mérida, tal como em Madrid, respira-se liberdade. O caso é este: entra-se num café cheio de fumo e fuma-se; e quando não se quer levar com o fumo, vai-se ao café ao lado onde não se fuma e não se fuma. Simples, barato, lógico, romano, americano.

Nisto, como noutros assuntos mais importantes, os espanhóis não sofrem da doença tuga de acatar de ânimo leve todas as recomendações de Bruxelas. Em Espanha, pensa-se e adapta-se. Em Portugal, aplica-se com ortodoxia tudo o que vem de fora e agradece-se à Europa o facto de sempre termos sido europeus. Feitios. Por isso, leitor lusitano, é caso para dizer: Viva a antiga Lusitania! Mérida para a actual!

sexta-feira, fevereiro 29, 2008

GRACE JONES





Há dias, sofri o imprevisto de rever, na RPT 1, um filme que já muito amei por recomendação da Ana Teresa Pereira--o "Frantic", do Roman Polansky. A Ana Teresa tinha toda a razão: há argumentos que de tão labirínticos acabam por gerar em cada um de nós a sua própria estória (isto, inventei eu mesmo agora). No entanto, não foi isso que, desta vez, me seduziu no filme. Desta vez foi a música da esfíngica Grace Jones. Uma melodia soberba, estranhíssima, alienígena-disco sound, que Polansky soube incorporar muitíssimo bem na aparente falta de lógica do filme: "I have seen that face before".


Inesquecível o plano-sequência no qual o americano "maluco" dança com a francesa "traficante de droga".Absoluto aquele plano-sequência. Até apetece citar o Deleuze, mas não o vou fazer porque ainda não o li com olhos ler, mas apetecer, apetecia. Quem me dera dançar assim sobre a vida.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

DO REGICÍDIO DO REI-PÁSSARO DE PORTUGAL




Saudades do rei? Não, nem por isso. Reis e reizinhos há muitos, aliás. Arquétipos é que não. E o rei é um arquétipo, umas vezes inofensivo, outras vezes nem tanto, não é verdade? Quê? Reis loucos? Pois claro que sim, sempre os houve e muitos. E povos loucos? Ui, cala-te, boca! No entanto, este rei tu, Dom Carlos, homem pouco exigente, mas inteligente e culto, tinhas todas as condições para ser um rei moderno. Querem exemplos? Não tenho. Nem quero saber. Adiante.

Quanto mais te conheço e mais de ti sei, mais lamento o sucedido. Um tipo inteligente, gordo de pássaros e oceanografia como tu, sinceramente. Ó Carlos dos pássaros oceanográficos! Por que te terás esquecido da revolução francesa? Merda! Tiveste um império nas mãos, foste português, rei, parente de todas as grandes casas-ladras da Europa e, que diabo, enquanto o povo morria de fome, tu morrias de gordura. Gordo inteligente, pássaro naif, pássaro passarinho passarão, morreste mal.

Em suma, foste bruto como um português. Deixaste a vida passar-te ao lado. Pulha de ti mesmo, foste bruto e foste rei. Tu podias, potência-delicadeza do acto, se quisesses. E borraste-te todo, ó bruto.

Em suma: foste a fonte do republicanismo feroz. Por isso, gracias! Até sempre, ó rei-pássaro de Portugal!

segunda-feira, dezembro 31, 2007

NO PAÍS DO FAZ-DE -CONTA

Não, de nada vale levar a sério este país e este mundo. O país-do-faz-de-conta há-de sobreviver sempre, precisamente porque de si tira a fecundidade que o fecundará per secula seculorum. Daí o fingimento: corrente contra as coisas do mundo. Ser sereno é uma forma de tacto. Ser um corpo quase imaterial é viver entre os vivos e os mortos.